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quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Esternocleidomastóideo






Sobre o ALZHEIMER
Roberto Goldkorn é psicólogo e escritor

O meu pai está com Alzheimer.

Logo ele, que durante toda vida se dizia "O Infalível".
Logo ele, que um dia, ao tentar ensinar-me matemática, disse que as minhas orelhas eram tão grandes que batiam no tecto.
Logo ele que repetiu, ao longo desses 54 anos de convivência, o nome do músculo do pescoço que aprendeu quando tinha treze anos e que nunca mais esqueceu: esternocleidomastóideo.

O diagnóstico médico ainda não é conclusivo, mas, para mim, basta saber que esquece o meu nome, mal anda, toma líquidos de canudinho, não consegue terminar uma frase, nem controla mais as suas funções fisiológicas, e tem os famosos delírios paranóicos comuns nas
demências tipo Alzheimer.

Aliás, fico até mais tranquilo diante do "não sei ao certo" dos médicos; prefiro isso ao "estou absolutamente certo de que...", frase
que me dá arrepios.

E o que fazer... para evitarmos essas drogas?


Como?

Ler muito, escrever, buscar a clareza das ideias, criar novos circuitos neurais que venham substituir os afectados pela idade e
pela vida "bandida".

O meu conselho é para não serem infalíveis como o meu pobre pai;
não cheguem ao topo, nunca, pois dali só há um caminho: descer.
Inventem novos desafios, façam palavras cruzadas, forcem a memória, não só com drogas (não nego a sua eficácia, principalmente asnootrópicas), mas a correr atrás dos vazios e lapsos.

Não sossego enquanto não me lembro do nome de algum velho conhecido, ou de uma localidade onde estive há trinta anos.
Leiam e empenhem-se em entender o que está escrito, e aprendam outra língua, mesmo aos sessenta anos.

Coloquem a palavra FELICIDADE no topo da sua lista de prioridades:
"7" de cada "10" doentes nunca ligaram para essas "bobagens" e viveram vidas medíocres e infelizes - muitos nem mesmo tinham consciência disso.

Mantenha-se interessado no mundo, nas pessoas, no futuro.

Invente novas receitas, experimente (não gosta de ir para a cozinha? hummmm... preocupante).
Lute, lute sempre, por uma causa, por um ideal, pela felicidade.

Parodiando Maiakovski, que disse "melhor morrer de vodca do que de tédio", eu digo: melhor morrer a lutar o bom combate do que ter a personalidade roubada pelo Alzheimer.

Dicas para escapar do Alzheimer:

Uma descoberta dentro da Neurociência vem revelar que o cérebro mantém
a capacidade extraordinária de crescer e mudar o padrão de suas conexões.

Os autores desta descoberta, Lawrence Katz e Manning Rubin (2000), revelam que
NEURÓBICA, a "aeróbica dos neurónios", é uma nova forma de exercício cerebral projectada para manter o cérebro ágil e saudável, criando novos e diferentes padrões de actividades dos neurónios em seu cérebro.
Cerca de 80% do nosso dia-a-dia é ocupado por rotinas que, apesar de terem a vantagem de reduzir o esforço intelectual, escondem um efeito perverso; limitam o cérebro.

Para contrariar essa tendência, é necessário praticar exercícios
"cerebrais" que fazem as pessoas pensarem somente no que estão a fazer, concentrando-se na tarefa.
O desafio da NEURÓBICA é fazer tudo aquilo que contraria as rotinas, obrigando o cérebro a um trabalho adicional.
Tente fazer um teste:

- use o relógio de pulso no braço direito;
- escove os dentes com a mão contrária da de costume;
- ande pela casa de trás para frente; (vi na China o pessoal a treinar
isso num parque);
- vista-se de olhos fechados;
- estimule o paladar, coma coisas diferentes;
- veja fotos de cabeça para baixo;
- veja as horas num espelho;
- faça um novo caminho para ir ao trabalho.
A proposta é mudar o comportamento rotineiro!
Tente, faça alguma coisa diferente o com seu outro lado e estimule o seu
cérebro.


PS O nosso António Silva barralha as sinapses. ainda bem!

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

3 em 1 universo

Crónica escrita a partir do poema "Máquina do Mundo", de António Gedeão (in Máquina de Fogo, 1961), e elaborada para o Exploratório Infante D. Henrique, Centro de Ciência Viva de Coimbra, no âmbito da Semana Nacional de Ciência e Tecnologia, a decorrer entre 22 e 28 de Novembro de 2010.

[α,∞)?

Que intervalo de tempo e de espaço, de matéria e de energia, é esse Universo em que a nossa vida pontua? Em que singularidade se originou? Quando é que foi t = 0? Há cerca de 13,7 mil milhões de anos, quando todo o Universo, conhecido e desconhecido, estava reunido num único ponto infinitesimamente compacto, imensurável, adimensional!?

Foi Georges Lemaître, padre e cientista, o primeiro a propor, em 1927, um início assim para o Universo. Sem dimensões de tempo nem de espaço, uma singularidade. Chamou-lhe a “hipótese do átomo primevo” e baseava-se em assumpções decorrentes da teoria da relatividade geral de Einstein. Anos mais tarde, em 1949, Fred Hoyle haveria de baptizar, ainda que pelo ridículo, esse momento com a designação de “Big Bang”.

O modelo do “Big Bangnão descreve a singularidade, mas sim o que aconteceu imediatamente a seguir a ela e que acabou por nos dar origem. Segundo a teoria mais corrente do “Big Bange a teoria da inflação, a partir da singularidade, esse nada absoluto grávido de tudo, o universo expandiu-se, súbita e incontrolavelmente e, em cerca de 0,
0000000000000000000000000000001 segundo, emergiram as forças da gravidade, do electromagnetismo, as forças nucleares fortes e fracas.

Sob acção destas forças, uma revoada de partículas elementares, fotões, electrões, protões, neutrões, resultantes de outras fundamentais como os quarks, polvilharam o nada em todas as direcções, num número de partículas de cada tipo na ordem de 1 seguido de 89 zeros!

Em 1929, Edwin Hubble observou que a distância aparente de galáxias distantes era tanto maior quanto maior fosse o desvio para o vermelho dos seus espectros luminosos observáveis. E, espantosamente, verificou que quanto mais distantes se encontravam maior era a velocidade a que se afastavam da nossa posição aparente.

Constatamos que as galáxias mais longínquas se afastam umas das outras a velocidades tanto maiores quanto mais longe estiverem de nós. Afastam-se de quê? Da singularidade inicial. Vão para onde? Para o nada infinito no tempo, finito num intervalo de espaço em expansão!

Até onde podemos ver, e ver permite-nos calcular distâncias no espaço e no tempo, através dos actuais radiotelescópios, a fronteira do Universo visível encontra-se algures a 145 biliões de triliões de quilómetros (14 000 milhões de anos-luz) de distância aparente!

Universo visível? …O espanto esmaga-nos com o peso do Universo que não é visível, “preenchido” por matéria dita negra e que corresponde a 85% de toda a matéria do Universo. Viajamos num mar de escuridão que não emite radiação electromagnética! E por isso esse oceano cósmico é indetectável pelos nossos olhos, adaptados que estão a sentir uma pequena fresta, um intervalo suficiente do espectro da luz solar.

E que vazio? Incomensurável! Num átomo de hidrogénio, o combustível das estrelas e o elemento mais abundante do Universo, 99,9999% é vazio! O seu núcleo, constituído por um único protão, ocupa apenas 0,00001% do volume de todo o átomo. O resto é nada e uma certa probabilidade de encontramos um electrão, num determinado estado quântico.

E é pelo balanço delicado entre repulsão e atracção electrostática entre nuvens electrónicas e núcleos atómicos, “coreografias” magnéticas e tudo o mais que se expressa nos princípios colombianos, quânticos e de exclusão, que as indiscerníveis partículas fundamentais dos átomos interagem, dando-nos esta sensação de matéria, quando apertamos as mãos.

E, paradoxalmente, é esse intervalo cheio de vazio que permite interacções entre átomos diferentes, gerando compostos que arquitectam a vida tal qual a conhecemos.

Somos então um intervalo vazio semeado de partículas e energia, cerzidos no tear sempre crescente de tempo e de espaço.

E, neste intervalo assim crescente, somos o resultado de uma singularidade de gente.

António Piedade


5% é tudo!


uma história gráfica do Universo

a minha crónica semanal no jornal i



Se qualquer descoberta em astronomia tivesse de ser comunicada de uma maneira comercial e completamente elucidativa, teria de ter sempre um asterisco remetendo para as letras miudinhas e esquecidas do final do anúncio.

E que diria a nota?

"Todo este conhecimento é baseado em 5% do Universo que conhecemos; os outros 95% ainda são uma enorme incógnita!". Anote: todos os reinos das galáxias, estrelas, planetas, cometas, montanhas e oceanos, plantas, animais, humanos constituem apenas 5% do Universo. Os restantes 95% distribuem-se por algo a que os cosmólogos chamam energia negra (72%) e matéria negra (23%), duas entidades que são a dor de cabeça necessária para a actual compreensão do Cosmos.

A pergunta é inevitável: mas então se não conhecemos 95% do Universo como é que conseguimos construir grandes modelos, teorias, ideias sobre o Cosmos?

Porque podemos construí-los mesmo sem saber o que são. Se teimarmos em abrir uma porta mas se a mesma resiste, então desconfiamos que algo está a impedir o movimento. Podemos não saber o que é, mas algo é! E o mais chato no caso destas "negras" do Cosmos é que são cientificamente pouco sociais; a matéria negra tem massa mas não interage com nada e ninguém; se não existisse não perceberíamos porque e como evoluem os corpos celestes.

A energia negra esconde-se no próprio espaço em si e sem ela a expansão do Universo torna-se confusa. O meu amigo está confuso? Os cosmólogos também... ainda!

Universo Observável

A propósito do texto do Miguel Gonçalves e dos meus textos recentemente aqui e aqui colocados a propósito do Universo observável e existência de energia e matéria negra em quantidades quase totalitárias, ocorreu-me uma história que a seguir conto, numa adaptação minha. Aliás, quando me interrogo sobre o "universo", como objecto de estudo e de observação através do método científico, esse exemplo surge imediata e recorrentemente.

“Numa noite escura que nem breu, um sujeito percorre uma rua. Aproxima-se de uma zona iluminada pelo único candeeiro público que conhece. Verifica que há um outro sujeito à procura de algo na zona iluminada e pergunta-lhe:

- Desculpe, anda à procura de alguma coisa?

- Sim, da chave de minha casa? – Responde atarefado o segundo sujeito.

- Tem a certeza de que foi aqui que a perdeu? – Retorque o primeiro.

- Não, mas esta é a única zona iluminada onde a posso procurar.”

Esta breve e anedótica história é uma boa caricatura do trabalho científico: mesmo que teoricamente seja provável que a "chave" esteja logo ali ao lado da zona iluminada, só quando tivermos tecnologia que nos permita estender a procura nesse lado é que poderemos efectuar observações.

As luas de Júpiter já orbitavam este planeta no tempo de Ptolomeu, mas foi preciso observar através da luneta de Galileu para as encontrar.

A energia e matéria negra são pressentidas para explicar o nosso actual modelo do Universo, mas precisamos da tecnologia dos aceleradores de partículas para as podermos encontrar e caracterizar.

Por outro lado, é espantosa a capacidade preditiva dos modelos científicos que "guiam" os desenvolvimentos tecnológicos à procura de novas observações que eventualmente os possam comprovar, mas que também poderão demonstrar que estavam desajustados da realidade.

Mas também não basta possuir uma forma inovadora de observação do universo. É preciso fazer a pergunta certa e procurar no sítio onde está a chave.

É assim a ciência.

António Piedade

terça-feira, 2 de março de 2010

Quem Pergunta Quer Saber

Algumas das respostas que dei para um livro a sair em breve contendo perguntas e respostas sobre ciência para um público juvenil:

P- O que estuda a física?

R- A palavra "physis", que está na raiz de física, vem do grego e significa "Natureza". A física é a ciência que estuda o mundo natural ou material. A física estuda a matéria e a energia que existe no espaço e no tempo sob as mais variadas formas e em todas as escalas, do muito pequeno ao muito grande. Embora, sábios da Antiguidade como Aristóteles e Arquimedes possam ser considerados físicos, a física como uma ciência experimental começou apenas, durante a chamada Revolução Científica, no final do século XVI com o italiano Galileu Galilei e alguns dos seus contemporâneos, cujo trabalho foi continuado pela geração seguinte, na qual se destaca o inglês Isaac Newton. A física é uma ciência básica uma vez que procura (e encontra!) as leis e teorias fundamentais, baseadas na observação e na experiência, que descrevem o comportamento da Natureza. A física procura a simplicidade na variedade e complexidade do mundo (Newton disse que "a verdade deve ser encontrada na simplicidade e não na multiplicidade e na confusão das coisas"). A física precisa da matemática (Galileu disse que "o Livro da Natureza está escrito em caracteres matemáticos") e está ao serviço de várias outras ciências como a química, a biologia e a geologia.

P- Que aplicações práticas tem?

R- A física tem inúmeras aplicações, que facilitam a nossa vida no mundo, e que são procuradas e aperfeiçoadas pelos vários ramos da engenharia. A física clássica (mecânica de Galileu e Newton) é necessária não só para construir casas para vivermos, em particular para escolher os materiais mais adequados e para os dispor da melhor maneira, como também estradas, pontes e outras vias, que nos permitem deslocar-nos com mais facilidade. Por outro lado, basta pensar nas televisões que temos em nossas casas ou nos telemóveis que trazemos hoje nos nossos bolsos ou ainda nos computadores que usamos e na sua ligação em rede, para vermos como a física moderna (nomeadamente a mecânica quântica, que descreve o comportamento de partículas pequenas como o electrão) está hoje por todo o lado, sendo por isso a sua utilidade por demais evidente.

P- Porque devemos acreditar em coisas que não podemos ver nem tocar?

Há muitas maneiras de ver e de tocar. Pode-se, por exemplo, ver mais longe com a ajuda de um telescópio (Galileu há 400 anos foi o primeiro a olhar para o céu com a ajuda desse instrumento). Pode-se também hoje ver os átomos e moléculas, de que é feita a matéria normal, com o auxílio de microscópios especiais. Os instrumentos científicos são meios de ampliar a nossa vista e, portanto, a nossa compreensão do mundo. Uma sonda espacial que pouse em Marte ou um feixe de partículas que seja lançada contra um núcleo atómico são formas de tocar na matéria, embora obviamente não se esteja a tocá-la directamente com as mãos. Podemos e devemos acreditar nas coisas que vemos e tocamos dessa maneira, não estando limitados nem pela nossa escala nem pelos órgãos dos sentidos com que estamos naturalmente equipados. A física progride sempre que é inventado um novo instrumento que permita ampliar o poder da vista humana e a acção das mãos humanas. A física é, ao fim e ao cabo, a descoberta que procuramos fazer e fazemos de todo o Universo e não apenas da porção do universo à nossa escala e que é acessível directamente aos órgãos dos nossos sentidos. Somos apenas uma pequena parte de um imenso Universo, embora, tanto quanto saibamos, sejamos a única parte que o procura descobrir.

P- O que são quarks?

R- Os quarks são partículas fundamentais, tal como os electrões e os neutrinos, mas bastante mais pesados do que estes. Constituem os protões e neutrões, genericamente chamados nucleões, que são os constituintes de todos os núcleos atómicos, tendo a particularidade de estar muito unidos entre si (tanto um protão como um neutrão possuem três quarks, unidos fortemente entre si, distinguindo-se um do outro pelo tipo desses quarks). No núcleo atómico há outras partículas que têm massa menor que as dos protões e a dos neutrões, pois só possuem dois quarks, ou melhor, um quark e um antiquark: são os chamados mesões. Conhecem-se seis tipos de quarks, e portanto também seis tipos de antiquarks, e tudo leva a crer que não haverá mais. No entanto, a matéria normal, contendo protões e neutrões no núcleo atómico, só precisa de dois tipos de quarks, os chamados "up" e o "down". A palavra "quark" foi retirada pelo físico norte-americano Murray Gell-Mann de um livro do escritor irlandês James Joyce: ele viu-se na necessidade de introduzir os quarks para explicar de forma unificada a estrutura de todas as partículas do núcleo. Em princípio, é possível, em condições de grande energia, libertar os quarks do interior dos protões e dos neutrões, fazendo uma "sopa de quarks".

P- O que é a antimatéria?

R- É matéria feita de anti-partículas, que são partículas que têm a carga com o sinal oposto à das partículas de matéria normal, sendo a elas semelhantes em tudo o resto: por exemplo, a anti partícula do electrão é o positrão, que tem carga positiva, mas massa e outras propriedades iguais às do electrão. Os quaks e os neutrinos também têm anti-partículas. As partículas e as respectivas anti-partículas desfazem-se quando se encontram, libertando energia (a massa converte-se em energia, de acordo com a famosa fórmula de Einstein E = mc^2). Por exemplo, o positrão, que é emitido por certos núcleos atómicos instáveis, aniquila-se quando encontra um electrão (dizemos que há destruição do par electrão-positrão). Existe antimatéria no Universo, embora ela seja na nossa região cósmica, e felizmente que assim é, muito mais rara do que a matéria. É ainda hoje um grande mistério perceber por que razão, no Universo, ou pelo menos na nossa região do Universo, há muito mais matéria do que antimatéria. Os físicos sabem produzir feixes de anti-partículas num acelerador e sabem, usando ainda esse instrumento, fazê-las colidir com partículas, de modo a originar energia. Sabem também combinar, embora em pequenas quantidades, certas anti-partículas, como o antielectrão e o antiprotão para originar o antiátomo de hidrogénio. Sabem, portanto, e embora de forma limitada, fazer anti-matéria.

P- O que é a teoria das cordas?

R- É uma teoria unificadora em física de partículas, que procura unir a teoria quântica com a teoria da gravidade, isto é, procura unir a teoria que descreve ao nível do muito pequeno a força electromagnética e as forças nucleares com a força da gravidade. Porém, muitos físicos não a consideram uma teoria física, mas sim uma especulação físico-matemática, por falta de confirmação experimental, que é muito difícil ou mesmo impossível de obter com os instrumentos e as capacidades actuais. Esses autores consideram-na, por isso, uma teoria mais "metafísica" do que física, isto é, uma teoria que está para além da física. Nos anos mais recentes têm sido apresentadas várias formulações matemáticas da teoria das cordas. O nome deve-se ao facto de as partículas elementares, nesse quadro, não serem objectos pontuais, mas sim objectos a duas dimensões, aparentados a cordas.

P- A expansão do Universo está a acelerar?

R- Sim, já se sabia que o Universo estava a expandir-se, mas dados astronómicos recolhidos nos últimos anos, nomeadamente a observação de grandes estrelas que explodem, dão a entender que o Universo não só se está a expandir como está em expansão acelerada, isto é, a expandir-se a um ritmo cada vez mais rápido. Não se conhece a causa desse fenómeno, que pode ser devido a uma força hoje desconhecida (a essa força associa-se a chamada "energia escura").

P- Tudo no Universo é matéria e energia?

R- Sim, pode dizer-se que tudo no Universo é matéria e energia. E a energia e a matéria podem converter-se uma na outra, de acordo com a fórmula de Einstein. Há formas misteriosas de matéria, como a matéria escura que exerce força gravítica mas não emite luz. E há formas misteriosas de energia, como a energia escura com a qual alguns físicos procuram explicar a expansão acelerada do Universo. Como há, no Universo, grandes mistérios por desvendar, a física parece ter um grande futuro à sua frente!

Carlos Fiolhais

terça-feira, 4 de novembro de 2008

As 10 experiências mais belas
















O belo tem um papel não só na arte mas também na ciência. E é por isso que não nos devemos admirar que um conceituado jornalista norte-americano que escreve para o "New York Times" e para a "Scientific American" tenha escrito um livro sobre as "dez experiências mais belas da ciência" ("The ten most beautiful experiments", George Johnson, Knopf, 2008). Um "top ten" deste tipo será sempre subjectivo e para o leitor poder reconhecer isso mesmo aqui vai a lista (por ordem cronológica):

1- lei do movimento dos graves num plano inclinado (Galileu),
2- o coração é uma bomba (Harvey),
3- decomposição da luz branca (Newton),
4- identificação do oxigénio (Lavoisier),
5- electricidade animal (Galvani),
6- indução electromagnética ( Faraday),
7- conversão de trabalho em calor (Joule),
8- inexistência do éter (Michelson),
9- reflexos condicionados nos cães (Pavlov) (em cima, figura do livro de Johnson; escolhi esta para chamar mais a atenção...),
10- determinação da carga do electrão (Millikan).

Desta lista 7 experiências são de física, 1 de química e 2 de biologia/medicina (embora a experiência das rãs de Galvani tanto possa ser classificada na física como na biologia).

A revista "Physics World" do Instituto de Física britânico já tinha escolhido em 2002 as 10 experiências mais belas de física, escolhidas por votação dos leitores e anunciadas num artigo do filósofo Robert Crease. Curiosamente, 3 coincidem com a lista de cima: as experiências de Galileu, de Newton e de Millikan. As outras 7 são:

1- a medida do raio da Terra (Eratóstenes),
2- a queda dos graves na torre de Pisa (Galileu, mas provavelmente nunca foi feita por ele),
3- a "pesagem da Terra" (Cavendish),
4- a experiência da interferência da luz com uma dupla fenda (Thomas Young), que foi considerada a mais bela (esta experiência pode ser vista no Museu da Ciência de Coimbra, tal como a experiência de decomposição da luz de Newton, no quadro da exposição "Segredos da Luz e da Matéria"),
5- o pêndulo giratório (Foucault),
6- a detecção do núcleo atómico (Rutherford),
7- a experiência da interferência de electrões (Davisson e Germer, por um lado, e G.P. Thomson, por outro).

Estas experiências podem ser vistas em simulações aqui. Um livro de Robert Crease apresenta estas experiências em mais pormenor: "The Prism and the Pendulum. The ten most beautiful experiments in science", Random House, 2003.

Os químicos não quiseram ficar para trás e um conhecido escritor de química Philip Ball escreveu um livro apresentando dez belas experiências de química: "Elegant solutions. Ten beautiful experiments in chemistry", Royal Chemical Society, 2005 (ganhou um prémio em 2008 da Btitish Society for the History of Science). Aqui trata-se mais de distinguir belos conceitos, sumariados assim pelo filósofo alemão Joachim Schummer:

1-"exact quantification (van Helmont)
2- attention to details (Cavendish)
3- patience in the conduct of the experiment (Marie Curie),
4- elegance in the design of the experiment (Ernest Rutherford),
5- miniaturization and acceleration of the experiment (various nuclear chemistry groups)
6- conceptual simplicity (Louis Pasteur),
7- imagination that transcends common views (Stanley Miller),
8- simple-minded, straightforward reasoning (Neil Bartlett),
9- economy, avoidance of deviations (Robert B. Woodward), and
10- conceptually straightforward design (Leo Paquette)."

Repare-se que a experiência de Rutherford reaparece (Rutherford, que se considerava um físico, ganhou o Prémio Nobel da Química para grande admiração sua: terá mesmo afirmado que já tinha visto muitas reacações rápidas, mas nenhuma tão rápida como a que o transformou de repente de físico em químico...). Há aqui experiências na fronteira com a biologia, como a de Pasteur e a de Miller (e, acrescente-se, Urey).

Inspirado pelo desafio de Crease, a revista "Bioscience" também procurou em 2003 saber junto dos seus leitores qual seria a experiência de biologia mais bonita. Ganharam duas "ex-aequo":

Carlos Fiolhais

sábado, 1 de novembro de 2008

Gastar dinheiro no TGV? o futuro é este!

Supercondutividade a procura do zero absoluto

O Museu Boerhaave em Leiden celebra com a exibição especial Jacht op het absolute nulpunt o centenário da liquefacção do hélio, cuja história foi resumida num artigo muito interessante no número de Março da Physics Today. O director do museu e curador da exposição, Dirk van Delft, explicita no artigo «Little Cup of Helium, Big Science» que o dia 10 de Julho de 1908, em que Heike Kamerlingh Onnes conseguiu produzir 60 ml de hélio líquido a uma temperatura de 4.2 Kelvin ou −269°C, marca o princípio da «Big Science» em física. Vale a pena ler o artigo do historiador de ciência, disponível em formato pdf aqui ou aqui para quem não tenha acesso à Physics Today.

O trabalho de Kamerlingh Onnes, que lhe mereceu o Nobel da Física em 1913, era baseado no trabalho de dois compatriotas igualmente galardoados com o Nobel da Física, J.D. van der Waals e H.A. Lorentz. Em particular, Onnes estava interessado em testar as teorias de Johannes Diderik van der Waals acerca da equação de estado de gases reais. Kamerlingh Onnes conseguiu assim «bater» (Sir) James Dewar que o ultrapassara na liquefacção do hidrogénio (20.3 K) em 1898 (e inventou no processo o que actualmente chamamos de Dewars ou termos). Com a liquefacção do hélio e a capacidade de liderança de Onnes, o laboratório de física de Leiden passou a ser «o local mais frio da Terra» e tornou-se o polo internacional da física de baixas temperaturas.

A razão porque Dirk van Delft considera que a Big Science em Física nasceu há 100 anos em Leiden pode ser melhor entendida se pensarmos que três anos depois de liquefazer o hélio pela primeira vez, Onnes descobriu que a resistividade eléctrica do mercúrio diminuia para zero quando o metal era arrefecido em hélio líquido, ou seja, a sua condutividade eléctrica tornava-se infinita a esta temperatura. Estava descoberta a supercondutividade!



Mas as surpresas reservadas pelo hélio líquido não se esgotam na supercondutividade. O Carlos já nos falou de Lev Landau a propósito doutro centenário, o do nascimento deste físico brilhante. Landau ganhou o Prémio Nobel da Física de 1962 pelos seus trabalhos sobre o hélio a baixas temperaturas, galardão igualmente conferido em 1978 a Pyotr Kapitsa. Kapitsa descobriu em 1938 que a viscosidade do 4He líquido cai abruptamente (108 vezes) a uma temperatura de 2.17 K, ou seja, descobriu que o isótopo mais abundante do hélio é um superfluido abaixo desta temperatura (ponto λ).

A superfluidez, a capacidade de um líquido fluir sem qualquer resistência que pode ser apreciada no vídeo, foi elegantemente explicada por Landau em 1941. O 4He comporta-se como uma espécie de condensado de Bose-Einstein (BEC), embora as suas propriedades não possam ser descritas quantitativamente pela teoria de Bose-Einstein uma vez que no estado líquido existem interacções entre as espécies, nomeadamente as forças intermoleculares conhecidas como forças de van der Waals, nomeadas em honra do cientista cujo trabalho motivou a primeira liquefacção do hélio.

A existência deste novo estado da matéria foi prevista por Einstein que extrapolou para átomos a estatística de Satyendra Nath Bose inicialmente proposta para fotões. Mas nem Einstein estava muito certo sobre os BECs como confirma uma carta que endereçou em 1924 a Ehrenfest:

«A partir de uma certa temperatura, as moléculas 'condensam' sem forças atractivas, isto é, acumulam-se a velocidades nulas. A teoria é atraente, mas haverá nela alguma coisa de verdade?»

A 5 de Junho de 1995, Eric Cornell, Carl Wieman e colaboradores dissiparam as dúvidas suscitadas por Einstein criando o primeiro condensado de Bose-Einstein. Este condensado de rubídio-87 foi conseguido por recurso a uma técnica que valeu aos seus inventores, Steven Chu, Claude Cohen-Tannoudji e William D. Phillips, o Nobel da Física em 1997. Quatro meses depois, Wolfgang Ketterle no MIT criou um condensado de outro metal alcalino, desta vez sódio-23. Cornell, Wieman e Ketterle foram recipientes do Nobel da Física em 2001 pela sua descoberta.



Mas o hélio líquido continuou a surpreender e 19 anos depois do Nobel de Kapitsa, o prémio foi novamente atribuído à descoberta da superfluidez do hélio, agora do isótopo 3He descoberta em 1972 por David M. Lee, Douglas D. Osheroff e Robert C. Richardson.

Enquanto o 4He é um bosão (segue a estatística de Bose-Einstein), o 3He é um fermião (segue a estatística de Fermi-Dirac) e assim não devia exibir superfluidez. Mas os bosões podem de facto condensar devido ao que justifica a supercondutividade descoberta por Kamerlingh Onnes. A supercondutividade é explicada pela teoria BCS, desenvolvida por John Bardeen, Leon Cooper e Robert Schrieffer (e lhs valeu o Nobel da Física em 1972). Basicamente a teoria diz-nos que embora os electrões sejam fermiões, em metais sobrearrefecidos combinam-se em pares de Cooper que por sua vez se comportam como bosões.

Em 1965, Anthony J. Leggett formulou uma teoria sobre a fase superfluida de fermiões, nomeadamente 3He, na revista Physical Review. Sete anos depois, meras semanas após a descoberta de Lee, Osheroff e Richardson, Leggett interpretou os novos dados na Physical Review Letters em que identifica o estado visto pelos seus colegas (que lhe deram previamente uma cópia do artigo). A explicação valeu-lhe o Nobel da Física em 2003, distinção que partilhou com Alexei A. Abrikosov e Vitaly L. Ginzburg por «contribuições pioneiras para a teoria de supercondutores e superfluidos».

Palmira F. da Silva

Evolução Humana e Consciência

O que é a consciência? Para que serve? Somos os únicos seres conscientes?

Enquanto olha para estas linhas desenrola-se uma miríade de processos: os fotões de luz incidem na sua retina, os sinais eléctricos resultantes circulam pelo nervo óptico e são enviados para regiões específicas do cérebro que permitem uma descodificação das imagens. Mas, ao olhar para a página está consciente dela, experienciando as imagens das palavras e das letras. Ao mesmo tempo o seu significado pode invocar sentimentos, emoções ou pensamentos, que se desenrolam exclusivamente na sua mente. Essas experiências constituem a consciência: a vida subjectiva interior da mente.

O cérebro humano é o órgão mais complexo que a ciência identificou até hoje. O cortex cerebral terá cerca de 30 mil milhões de neurónios e mil biliões de conexões entre eles. Se contássemos as sinapses à taxa de uma por segundo, terminariamos dentro de trinta e dois milhões de anos. Hoje é claramente assumido que o pensamento, incluindo o pensamento consciente, é o produto deste órgão complexo. Mas, o cérebro não é um computador digital, não funciona como uma máquina lógica. Será mais parecido com um sistema de reconhecimento de padrões.

O cérebro e o conjunto de funções cognitivas que produz, nas quais se inclui a consciência, é objecto de vários domínios da investigação científica. Um assunto que no passado era tema exclusivo da filosofia. Segundo o dualismo cartesiano de Decartes mente e corpo eram duas realidades distintas, o que não se veio a confirmar (Damasio, 1995 - O erro de Descartes). O primeiro grande passo no sentido de uma abordagem científica da mente foi dado por Darwin que sustentou correctamente que o cérebro humano evoluiu tal como as mãos ou o queixo: todos os organismos e todas as suas partes evoluiram, sem excepção. Esta perspectiva constituiu então uma verdadeira ruptura, que não foi acompanhada pelos seus contemporâneos, como Wallace, que, sem razão, excluiam o cérebro humano da evolução. A conclusão de Darwin implicava ainda que a mente é o produto de um órgão biológico, um pressuposto base de toda a neurobiologia.

De entre as funções complexas do cérebro, a consciência é a mais misteriosa e difícil de caracterizar (Damasio, 2000 - O sentimento de si; Crick, 1994 - The astonishing hypothesis). A consciência é um produto da mente, altamente sofisticado, que constitui a base da nossa comunicação e relação com o mundo físico e social, tal como a entendemos. É também um produto privado, exclusivo de cada cérebro. A nossa percepção da consciência dos outros deriva da nossa experiência sobre o seu comportamento, incluindo o verbal, que nos leva a concluir serem basicamente como nós.

Mas o que é realmente a consciência?
António Damásio dividiu o problema em dois para o simplificar: o primeiro é o do “filme no cérebro”, a sucessão de acontecimentos externos e internos que o cérebro vai registando, sendo o segundo o problema do ‘eu’ (‘self’). Aquela espécie de show multimédia no interior do cérebro, pela continuidade do fluxo de informação sobre os acontecimentos, possibilita a identificação de uma continuidade e estabilidade espacio-temporal que permitem a identificação do eu.

Gerald Edelman formulou uma outra hipótese para explicar a experiência consciente: a hipótese do núcleo dinâmico. Esta resulta da actividade paralela coordenada por conexões recíprocas entre vastas regiões do cérebro, constituindo agregados de neurónios, ao nível do sistema tálamo-cortical, que ao manterem interacção por períodos superiores a centenas de milisegundos permitem a formação de uma experiência consciente. Segundo esta hipótese a consciência de um evento não ocorre antes de decorridos 300 milisegundos, o tempo necessário para a activação de um destes agregados de neurónios.

Enquanto estas hipóteses sobre o que é a consciência vão sendo testadas, há outras questões igualmente interessantes a colocar. Como a de saber para que serve a consciência. Ou seja, porque evoluiu a consciência? O que implica outra questão relacionada: a de saber se somos os únicos seres conscientes na biosfera?

A maioria dos autores assume que a consciência tem vários níveis. Sabe-se que outros animais, além de nós, possuem estados de consciência, ainda que menos elaborados, como a consciência de si, do próprio corpo. Foi isso que demonstrou Gordon Gallup quando pintou uma mancha vermelha na sobrancelha de um chimpanzé, enquanto dormia. Ao acordar e olhar-se num espelho, o chimpanzé foi imediatamente inspeccionar com a mão aquela região do seu rosto que tinha algo diferente, evidenciando o seu auto-reconhecimento na imagem do espelho. Os primatas são os primeiros candidatos à identificação de formas de consciência mais elaborada, não por estarem filogeneticamente mais próximos de nós, mas por partilharem connosco várias características, como cérebros grandes e complexos e uma ecologia social propícia ao reconhecimento individual e à acção consciente. Há outros grupos de animais a considerar por partilharem esssa características, como os golfinhos.

Se nós partilhamos com os outros primatas, filogeneticamente mais próximos, formas elaboradas de consciência, como a percepção dos estados conscientes dos outros, então elas terão surgido em um antepassado evolutivo comum. Se não, trata-se de algo exclusivo da nossa evolução, que tanto pode ter ocorrido há 2 milhões de anos como há alguns milhares.

Uma das formas mais elaboradas de consciência é a noção de que, não só somos conscientes, como os outros também são e que o seu pensamento é diferente do nosso. O simples pensamento: “eu acho que ela pensa que eu gosto dela” envolve uma matemática complexa: significa que cada um de nós tem uma teoria sobre o funcionamento da mente dos outros. E naturalmente há teorias que são melhores que outras. Este pensamento intencional, por óbvio que pareça, não nasce connosco. Desenvolve-se na criança, verificando-se um grande salto por volta dos quatro anos. Só nessa altura a criança adquire uma teoria da mente bem desenvolvida ficando perfeitamente equipada para mentir. Não antes.

Uma das hipóteses mais interessantes para explicar porque evoluimos esta consciência, é a hipótese maquiavélica de Richard Byrne e Andrew Whiten (Byrne, 1995 - The thinking ape). Segundo esta e como o nome sugere, o contexto social propicia a evolução de formas de acção que beneficiam do facto de os actores serem capazes de calcular as trajectórias comportamentais dos outros actores e receptores do seu ambiente social. Esta capacidade de pensar o pensamento dos outros de forma independente constitui uma ferramenta fundamental da vida social, que estamos constantemente a utilizar, quando pensamos conscientemente nos mais diversos aspectos das nossas vidas. Assim, segundo aqueles autores, foi a grande complexidade do ambiente social dos nossos antepassados evolutivos que favoreceu a evolução da mente complexa que possuímos, com especial incidência para a consciência. Esta faz principalmente falta no relacionamento social. Na realidade, os indivíduos autistas, que têm uma conhecida falta de capacidade de relacionamento social, revelaram ter uma teoria da mente muito rudimentar. Por outro lado, quando comparamos a dimensão relativa do neocortex dos vários primatas com o tamanho dos grupos sociais, verificamos que quanto maior o grupo maior o neocortex.

Apesar disso, não sabemos se outros primatas são dotados de uma teoria da mente. Estudos recentes com chimpanzés apresentam resultados equívocos. Circunstância agravada por não podermos recorrer à linguagem para comunicar. Assim, a questão de saber se estamos ou não sozinhos na biosfera, quanto a esta característica, permanece em aberto.

A investigação científica da consciência apenas está no início, já que só recentemente dispusemos de instrumentos que nos possibilitam olhar para o cérebro em funcionamento, de forma não invasiva. Esta investigação irá certamente intensificar-se nos próximos anos. A tarefa de elucidação do que é a consciência será árdua. Mas, será sem dúvida uma tarefa da ciência.

Paulo Gama Mota

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Big Bang


Não havia espaço, nem tempo. Nem matéria, nem energia. Era o "vácuo" (o "nada"). Mas, o "vácuo" também não existia. Era apenas um estado quântico. Nos primeiros 10-43 segundos (0.0000000000000000000000000000000000000000001 segundos) os físicos não sabem bem o que aconteceu. Isso foi há cerca de 15 mil milhões de anos! Deram-lhe o nome de "Big Bang". A partir daí, a física tem uma teoria relativamente bem fundamentada, suportada por observações da radiação cósmica.

A Terra deve ter-se formado há cerca de 4.56 mil milhões de anos. A existência de fósseis coloca a origem da vida na Terra, a pelo menos 3,5 mil milhões de anos. Há mesmo vestígios fósseis de células primitivas em rochas da Groenlândia com pelo menos 3,8 mil milhões de anos. A vida poderia ter começado, ainda muito antes, noutro astro de um qualquer sistema, ou em mais do que um. Para o caso, isso é irrelevante.

De entre as moléculas que havia na Terra antes do aparecimento da vida (há 3 ou 4 mil milhões de anos) estavam provavelmente a água, o dióxido de carbono, o metano e a amónia. Os químicos têm tentado imitar essas condições, colocando essas substâncias num balão e aplicando-lhes uma fonte de energia (luz ultravioleta ou descarga eléctrica — simulação de relâmpagos). Passadas algumas semanas encontram no balão moléculas mais complexas do que as originais: aminoácidos (blocos da construção de proteínas), purinas e pirimidinas - blocos da construção do ADN (ácido desoxirribonucleico).

Em dado momento formou-se, por causas ainda obscuras, uma molécula capaz de criar cópias de si mesma: um "replicador", que actuava como modelo, no caldo rico nos blocos moleculares necessários à formação de cópias.

Surgiram entretanto vários replicadores que competiam entre si pelos tais blocos. As variedades menos favorecidas ter-se-ão extinguido. As que sobreviveram construíram "máquinas de sobrevivência" dentro das quais pudessem viver [1].

Actualmente os replicadores são os genes e as "máquinas de sobrevivência" somos nós!

O gene é uma "entidade molecular" de extraordinária estabilidade — só assim se justifica a sua sobrevivência. Essa estabilidade de moléculas e agregados só se pode explicar, pela ligação química e pelas interacções intermoleculares (e.g., ADN = 2 hélices enroladas uma sobre a outra!). A teoria que explica a ligação química e estabilidade das moléculas é a teoria QUÂNTICA.

A descoberta da síntese da ureia em 1828 por Friedrich Woehler, a partir do cianato de amónio (sal inorgânico) derrubou a teoria de que os compostos orgânicos só poderiam ser sintetizados pelos organismos vivos (teoria da força vital).

Em 1922 o cientista russo Oparin sugeriu que a vida da célula foi precedida de um período de evolução química.

Em 1953, Stanley Miller (na Universidade de Chicago), então com 23 anos, realizou uma experiência que ficou célebre [2]:

Colocou num reactor (balão), uma mistura de amónia, hidrogénio e vapor de água (a que se chamou depois, a sopa primitiva). Queria assim simular a atmosfera primitiva. Depois de selar o reactor, provocou sucessivas descargas eléctricas no seu interior. Duas semanas depois (e muitas descargas) o líquido começou a mudar de cor. Quando o analisou encontrou pelo menos dois aminoácidos: a alanina e a glicina. As interacções entre estas moléculas poderiam levar à formação de moléculas mais complexas. A formação de ácidos nucleicos poderia ser um indício de vida pré-celular. De facto, em experiências posteriores (com outros reagentes inorgânicos simples) foram detectados ácidos nucleicos. A adenina poderia ser obtida a partir da polimerização de cianeto (que se poderia facilmente formar numa atmosfera primitiva). A adenina e outras bases poderiam, na presença de ácidos nucleicos, auto-organizar-se e formar hélices. Eventualmente, estes elementos pré-celulares poderiam ser envolvidos por uma membrana (lípido-proteína) dando origem a células primitivas.

É possível criar um ser vivo artificial a partir de matéria inorgânica?

A experiência de Miller levou à ideia de criar vida artificial. Tem havido muitas tentativas. David W. Deamer, por exemplo, da Universidade da Califórnia, Santa Cruz, lançou a ideia de criar uma "protocélula" (célula primitiva) há cerca de 30 anos.

Segundo ele, a protocélula deveria satisfazer 12 requisitos, nomeadamente, ter uma membrana que capta energia, manter gradientes de concentração de iões, confinar macromoléculas e dividir-se. As macromoléculas devem poder crescer por polimerização, evoluir, armazenar informação, ter a possibilidade de sofrer mutações, promover o crescimento de polímeros catalíticos. Vários laboratórios já conseguiram alguns destes requisitos, mas ainda faltam dois: i) a célula deve conter genes e enzimas que podem ser replicados e ii) esses genes devem ser partilhados entre as células filhas. David W. Deamer espera que, brevemente, seja possível atingir estes objectivos, talvez através de uma enzima que se duplique, e actue simultaneamente como material genético e catalisador.

Albert Libchaber, da Rockefeller University, sintetizou um plasmódio (célula com vários núcleos, formada através da divisão de um núcleo inicial) que gera proteínas e as coloca em sacos de membranas.Estas células (que funcionam) sobrevivem por 4 dias, mas não conseguiu que se reproduzissem.

Em Junho de 2007 apareceu nos media (e. g., BBC News) uma notícia que deixou muito boa gente estupefacta [3]: um grupo de cientistas submeteu um pedido de patente para um método de criar um "organismo sintético". O pedido de patente, do Instituto J. Craig Venter, reclama propriedade exclusiva de um conjunto de genes e de um organismo sintético vivo, que pode crescer e replicar-se, feito a partir desses genes.

O termo "BIOLOGIA SINTÉTICA" apareceu pela primeira vez no título de um artigo na revista NATURE em 1913, mas desapareceu até 1980, altura em que é aplicado no mesmo sentido que a tecnologia do ADN recombinante. Hoje em dia, o termo é usado para descrever a engenharia de circuitos genéticos, genomas e mesmo organismos.
A definição de biologia sintética é ilusiva, com o é a definição de "vida" diz Vincent Noireaux, professor de física da Universidade de Minnesota. Há ainda muitas questões fundamentais a resolver.

A vida parece ser comportamento ordenado da matéria, não baseado na tendência para passar da ordem à desordem (segundo princípio da termodinâmica), mas sim na ordem existente, que se perpetua, ou mesmo na passagem da desordem à ordem (por auto-organização ou "self-assembly"). Mas sobre isso dissertarei noutra altura.

Luís Alcácer

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

A Lei de Murphy


Do último livro de Nuno Crato, "Passeio Aleatório pela Ciência do Dia-a-Dia" (Gradiva), lançado hoje (09/04/10) em Lisboa, transcrevemos um dos aliciantes trechos:

Em 1949, a Força Aérea norte-americana fez uma série de experiências para medir as reacções do corpo humano a acelerações elevadas. Para tomar as medidas, era preciso fixar aparelhos ao corpo de pilotos. Cada aparelho podia ser montado apenas de duas formas: uma certa e uma errada. O engenheiro que concebeu a experiência mandou instalar 16 desses aparelhos, de forma a melhorar a precisão das observações e reduzir as hipóteses de erro. Pois o técnico que os instalou conseguiu montá-los todos na forma errada e a experiência falhou.

O engenheiro chamava-se Murphy e, desapontado, formulou a célebre lei que toma o seu nome: «Se há uma maneira errada de fazer as coisas, então é certo que alguém as fará mal.» No dia seguinte, o piloto que tinha sido cobaia no teste, major John Stapp, deu uma conferência de imprensa. Transmitiu a reacção de Murphy, embora de forma um pouco diferente: «Se algo pode correr mal, então é certo que vai correr mal.» Alguns repórteres decidiram incluir esta frase nas notícias e o dito ficou conhecido como Lei de Murphy.

Esta lei pessimista é invocada quando algo corre mal, havendo esperanças de que tal não acontecesse. Um exemplo típico entre brasileiros é «a fatia da tosta cai sempre no chão com a manteiga para baixo». Mas há outros exemplos habitualmente citados: «a parte mais importante de um fax é sempre aquela que aparece menos legível», ou «só se têm furos nos pneus quando se tem pressa», ou ainda «os computadores só são atacados por vírus quando não se fizeram cópias de segurança dos ficheiros».

Na realidade, como toda a gente sensata reconhece, a Lei de Murphy é apenas uma ironia e a sua aparente aplicabilidade generalizada é uma ilusão psicológica. Invocamo-la quando algo corre mal e esquecemo-la sempre que as coisas correm bem. Em geral, o nosso cérebro faz automaticamente uma selecção dos casos que parecem ajustar-se ao padrão que se procura. No que se refere à Lei de Murphy, em particular, estão em causa situações desagradáveis, que por isso se recordam mais persistentemente: lembramo-nos daquele dia azarado em que um furo no pneu nos fez perder o avião e esquecemo-nos das vezes em que não tivemos nenhum problema e chegámos a horas ao aeroporto.

Recentemente, alguns cientistas discutiram seriamente a Lei de Murphy. O físico Robert Matthews, por exemplo, deu-se ao trabalho de fazer experiências com tostas e verificou, como seria de esperar, que, sendo estas atiradas ao ar, a probabilidade de caírem com a manteiga para baixo é 1/2. No entanto, se as tostas rolarem de uma mesa com cerca de 80 cm de altura, como é habitual, a probabilidade de caírem com a face barrada para baixo é muito superior. A razão é simples, verificou o mesmo físico. É que, a essa altura, as tostas apenas têm tempo para fazerem meia volta. Se as mesas tivessem dois metros de altura, então as tostas cairiam preferencialmente com a face barrada para cima.

O artigo de Matthews discute ainda outras pretensas manifestações da Lei de Murphy e conclui serem resultados perfeitamente explicados pelas leis da física e pela teoria das probabilidades. A lição é simples: em vez de procurar explicações na fatalidade ou na premonição, vale a pena usar a cabeça e a ciência para tentar explicar os fenómenos. Entendida como graça, a Lei de Murphy tem a sua piada. Enquadrada no reino da superstição, nem piada tem.

http://www.humornaciencia.com.br/miscelanea/murphy.htm

Magia e Ciência

Um bom demonstrador científico é quase um prestidigitador (na foto, o grande mágico americano Howard Thurston, 1869-1936, o "Rei das Cartas") . Quando realiza experiências científicas perante um grupo de crianças (a “ciência divertida”), é usual que uma ou mais das crianças digm logo que “é magia!”. É ciência, mas a ciência em acção parece, por vezes, magia.

No entanto, há uma diferença fundamental entre ciência e magia. Ela reside no facto de o cientista não esconder os “truques”. Pelo contrário: A sua obrigação profissional é precisamente explicar os “truques”. Ele deve procurar dizer como é e por que é. Pelo contrário, um mágico, descontadas as notáveis excepções, faz ponto de honra em esconder os truques, mantendo o público não só ignorante como enganado. A ciência emergiu da magia e da superstição quando juntou ao espanto a explicação. O economista John Maynard Keynes disse que Isaac Newton foi o primeiro cientista e o último dos mágicos (esta última faceta, menos conhecida, foi revelada por Keynes depois de ter conseguido adquirido alguns manuscritos do sábio inglês com conteúdos esotéricos). Na física Newton enfatizou as condições e as causas, mas na alquimia não conseguiu mais do que iludir-se e iludir os outros. De facto, Newton não foi o último dos mágicos. O mundo tem hoje muitos cientistas, mas continua a ter muitos mágicos... Nem sei o que há mais, se cientistas, se mágicos...

Alguns mágicos defenderam ou têm defendido a ciência, protegendo-a das investidas mais descaradas do engano e da crendice. Um dos mágicos actualmente mais conhecidos é o norte-americano James Randi, um campeão na luta contra o paranormal. Conhecedor profundo das habilidades dos mágicos, não tem hesitado, nas suas frequentes aparições públicas, em desmontar as mistificações mais abusivas: por exemplo o encurvamento de colheres com o poder da mente ou a transmissão de pensamento à distância. Apesar de o ilusionismo ser uma arte e, como todas as artes, proporcionar interessantes pontes com a ciência (a maior parte dos truques de magia tem uma explicação científica mais ou menos óbvia!), está por vezes próximo de perigosas práticas de mistificação.

Randi segue uma tradição de outros mágicos famosos. Dois dos maiores mágicos de sempre, capazes das mais espantosas habilidades, estiveram do lado da ciência. O francês Jean-Eugène Robert (1805-1871), a que acrescentou o nome de Houdin com o qual ficou famoso, foi o primeiro mágico a usar a electricidade, um dos fenómenos que dominou a ciência do século XIX. Foi também um apaixonado por autómatos e outros engenhos mecânicos (de resto, ele era relojoeiro de formação). Houdin, considerado o pai da moderna prestidigitação, gostava de denunciar os truques dos seus colegas que invocavam poderes sobrenaturais. E não se coibia de apresentar ao público as explicações naturais para algumas das suas manipulações. Os seus livros revelaram com precisão os passos técnicos. Veja-se por exemplo a obra póstuma “Magia e Física Recreativa”.

Um dos grandes admiradores e seguidores de Houdin foi o norte-americano (judeu, de origem húngara) Erik Weiz (1874-1926), mais conhecido pelo seu nome artístico Harry Houdini. Que tem Houdini a ver com Houdin? O nome de Houdini vem de Houdin, que ele nunca conheceu pessoalmente, mas sobre o qual escreveu um livro “The Unmasking of Robert-Houdin” (1908). Houdini ficou célebre pelas suas espectaculares escapadas. Acorrentado e fechado numa caixa que depois era submersa na água, conseguia desenvencilhar-se rapidamente. Também se conseguia libertar de uma camisa de forças suspenso de cabeça para baixo por uma grua. Magia? Poderes sobrenaturais? Bem, Houdini, tal como Houdin, lutou quanto pôde contra os mágicos que reclamavam ter poderes sobrenaturais. Como Houdin, desmontou os truques, mostrando como os seus truques podiam ser naturalmente explicados. Também enfrentou os leitores do pensamento alheio e os comunicadores com os mortos. Com um notável sentido de humor, anunciou uma experiência de espiritualismo com a sua esposa, que era por vezes sua “partenaire” no palco: o primeiro que morresse devia comunicar com o sobrevivente...

Uma das particularidades mais curiosas da vida de Houdini foi a sua amizade com o escritor inglês Arthur Conan Doyle, o autor das histórias de Sherlock Holmes. Apesar dos livros deste detective terem por trás um fundo de racionalidade (“Elementar, meu caro Watson!”), a verdade é que Conan Doyle acreditava no espiritualismo e, em particular na comunicação com os mortos. Em 1923, a revista “Scientific American” nomeou um comité para investigar o paranormal, tendo convidado Houdini. Doyle reagiu inmediatamente, considerando o comité uma “farsa”. A evidente diferença de opiniões não impediu, porém, Houdini e Doyle de continuarem amigos...

E, em Portugal, como vamos de magia? O mágico mais conhecido, Luís de Matos, nunca revelou nenhum dos seus truques. Muitos lembrar-se-ão de um número que ele fez de adivinhação dos números de totoloto, no qual um presidente de câmara o assessorou. O número foi tanto mais grotesco quanto nenhum dos protagonistas teve uma palavra que suscitasse uma só dúvida que fosse nos mais crédulos. Mas, se houve crédulos, houve também incrédulos, julgo que em maior número. Terão pensado: se ele consegue adivinhar os números do totoloto por que é que não está mais rico?

Posted by Carlos Fiolhais

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Matéria Muito Condensada

Ao ler “matéria muito condensada” poderá haver quem pense que se trate de resumir informação transmitida aos alunos. Não, não se trata aqui de matéria no sentido de conteúdo curricular (aquilo que o professor “dá”) mas sim, mais prosaicamente, da matéria de que são feitas as coisas. Um dia um aluno universitário estudou por um livro de Física em língua inglesa que falava de “estrutura da matéria” (“structure of matter”) e dissertou depois sobre a “estrutura do assunto”, o que só mostra que o idioma inglês é tão traiçoeiro como o nosso. Vejamos o que acontece à matéria material, a matéria que é feita de átomos ou moléculas, quando essas partículas são muito apertadas umas contra as outras.

Dizemos que a matéria, sob o efeito da pressão, fica mais densa. Serve aqui a noção genérica de pressão (em linguagem do dia-a-dia, diz-se “estar sob grande pressão”), mas a pressão é uma grandeza física precisa, que se pode medir, sendo o resultado um número com uma certa unidade. A pressão é a força exercida por unidade de área, de modo que, para a pressão ser grande, é preciso uma força grande aplicada numa área pequena. A unidade de pressão mais usada internacionalmente tem o nome de pascal, do nome do filósofo e cientista francês Blaise Pascal (na figura) que viveu no século XVII e que foi dos primeiros a interessar-se pela pressão, nomeadamente em líquidos. Vale aqui a pena contar outra anedota escolar, a daquele aluno liceal que escreveu alegremente sobre a “Lady Pascal” quando queria referir a lei de Pascal...

Para se falar com algum rigor de matéria a grandes pressões, tem de se indicar o valor de pressão, o número de pascals (é errado dizer “pascais”, adulterando o nome do filósofo). O que são grandes pressões? A pressão normal é a pressão atmosférica, que resulta do peso de uma coluna de ar que todos “carregamos às costas”. São muitos pascals, cerca de cem mil.

Mas no estudo da física da matéria condensada, altas pressões significa pressões muito maiores do que a pressão atmosférica. Consegue-se matéria muito condensada colocando uma amostra entalada entre as pontas de dois cristais de diamante (escolhe-se o diamante por este ser extremamente duro mas se é possível facetar pontas) que são sujeitos à acção de uma prensa hidráulica (que transmite aos diamantes uma força enorme). No Gabinete de Física da Universidade de Coimbra existe uma pequena prensa que se usava no século XVIII para estudar a compressibilidade dos líquidos. Mas as prensas de diamante modernas tornam ridículas as prensas antigas. Obtêm-se hoje, nessas espantosas máquinas, pressões de cerca de dois milhões de vezes a pressão atmosférica. A pressões tão elevadas a matéria tem mesmo de ficar condensada, com os seus átomos bem "abraçados" uns aos outros. Mas este não é o extremo da matéria condensada. Em explosões químicas e, ainda em maior escala, em explosões nucleares conseguem-se, embora momentaneamente, pressões maiores. Hoje, as explosões nucleares, no ar ou subterrâneas, estão proibidas por acordo internacional, mas, durante muito tempo, um dos subprodutos desses testes foi precisamente o estudo experimental da matéria sujeita a grandes pressões. O recorde da pressão (real e não virtual) obtida na Terra pode ser verificado no “Livro Guiness dos Recordes”: foi nos anos cinquenta, quando os ensaios nucleares estavam na moda, e alcançou-se o valor prodigioso de 70 milhões de vezes a pressão atmosférica! Os computadores mais potentes do mundo fazem hoje “explosões virtuais” que substituem as reais. A física computacional tomou o lugar de alguma da experimentação mais cara e perigosa.

Para ficarmos a saber como se comporta a matéria a altas pressões, tomemos uma matéria tão normal como a água. Sabe-se, só de olhar para o congelador, que a água a baixas temperaturas congela, tornando-se gelo. Mas uma outra maneira de obter gelo, mais cara e por isso não tão recomendável, consiste em manter a temperatura fixa (a temperatura ambiente) e aumentar a pressão. A água acaba também por congelar, embora o gelo formado por compressão seja diferente do gelo produzido por arrefecimento à pressão normal. A água sólida distingue-se da água líquida por ter os seus corpúsculos constituintes – moléculas – dispostos numa estrutura regular em vez de vadearem ao acaso por todo o espaço. O gelo formado por compressão e o gelo formado por arrefecimento têm as moléculas ordenadas em estruturas diferentes. Conhecem-se hoje mais de doze variedades de gelo, embora só uma delas se coloque no uísque...

Há matéria formada a altas pressões que é substancialmente mais valiosa que a matéria em condições normais. É o caso da matéria de carbono: em condições normais, os átomos de carbono organizam-se segundo a estrutura da grafite (que aparece nos lápis), mas, sob grande pressão, os átomos de carbono organizam-se segundo a estrutura do diamante (uma pedra preciosa), precisamente a matéria necessária para construir as prensas de alta pressão. Os diamantes naturais formaram-se no interior da Terra, ao longo da história geológica, em condições de grande pressão. As minas de diamantes que existem, por exemplo, na África do Sul são das mais profundas escavações para o interior do nosso planeta. Mas, à pressão atmosférica, a forma mais estável de carbono não é o raro diamante mas sim a corriqueira grafite. Os físicos, quais alquimistas modernos, sabem como fazer diamantes a partir de grafite. Basta apertar muito a grafite! Sob o efeito violento da tortura, ela transforma-se súbita e magicamente em diamante. Os diamantes artificiais não se obtêm ainda por um processo simples e barato e, se isso um dia acontecer, os diamantes naturais perderão talvez a sua aura...

Assim como há diamantes no interior da Terra pode conjecturar-se que há diamantes no interior de outros planetas, satélites ou asteróides. Já alguém avançou essa hipótese: talvez nos distantes planetas Urano ou Neptuno haja diamantes. Basta, para tanto, que exista carbono e este tenha sofrido altas pressões, uma vez que os diamantes são, ao fim e ao cabo, apenas carbono muito condensado. Se tal hipótese se revelar verdadeira e continuar a ser difícil fabricar artificialmente diamantes na Terra, teríamos um bom motivo, embora demasiado material, para a exploração do sistema solar!

As outras substâncias também solidificam a altas pressões. As moléculas dos gases oxigénio ou hidrogénio, quando sujeitos a grande compressão, acabam por se ordenar numa rede cristalina. O hidrogénio tem sido o “Santo Graal” da investigação em matéria muito condensada. Tal acontece porque se suspeita que o hidrogénio a altas pressões deve ser metálico, isto é, um bom condutor da electricidade. Uma única experiência realizada no Laboratório Lawrence Livermore, na Califórnia, Estados Unidos, revelou o hidrogénio metálico em 1995, cerca de 65 anos depois de ele ter sido previsto pela teoria quântica. O que se fez foi comprimir instantaneamente uma amostra de hidrogénio com o auxílio de um poderoso canhão. Mas faltam outras experiências para confirmar esse primeiro aparecimento do hidrogénio metálico à superfície da Terra.

Há sítios do sistema solar onde o hidrogénio metálico deve existir de forma permanente: os interiores profundos dos grandes planetas Júpiter e Saturno. Aí a pressão é suficientemente elevada para metalizar o primeiro dos elementos químicos. E no Sol, não há também hidrogénio no Sol? O Sol tem, de facto, muito hidrogénio, mas a pressão no interior do Sol é muito mais elevada do que no interior de Júpiter e Saturno (cerca de 250 milhões de vezes a pressão atmosférica). Os electrões do hidrogénio estão completamente arrancados, desmanchando o átomo. Tão elevada é a pressão no Sol que permite a reacção nuclear que transforma hidrogénio e hélio, inundando-nos de energia. O “Guiness” diz quanto é a pressão no cerne do Sol, mas não esclarece onde é maior a pressão em todo o universo. A resposta é simples: há estrelas, mais massivas do que o Sol, em cujo centro a pressão é bem maior que no Sol. O caso limite ocorre nos chamados buracos negros, o que resta de estrelas pesadas que explodiram. Nesse sítio de pressões (quase) infinitas é onde a nossa física acaba!

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Breve História das Academias Científicas

Escrito em colaboração com António José Leonardo:

O desenvolvimento da ciência e da filosofia esteve sempre relacionado com a existência de instituições que promovessem a criação e comunicação de saberes. Na Antiguidade a instrução estava associada à religião, ocorrendo sobretudo em templos. Foi na Grécia antiga que surgiram as primeiras instituição seculares dedicadas ao ensino, como a Academia de Platão ou o Lycaeum de Aristóteles. As escolas e universidades fundadas na Idade Média tiveram como função principal a transmissão de conhecimentos. Os conteúdos ensinados baseavam-se nos escritos antigos que eram destilados com escasso espírito crítico.

A academia como sociedade de sábios com o objectivo de promover a pesquisa científica, estimulando a discussão entre pares, é uma das instituições criadas logo no início da ciência moderna, sendo ela própria parte do método científico. Uma teoria científica, para se afirmar, necessitava de ser comunicada a um conjunto de sábios que a podiam criticar livremente.

As primeiras academias resumiam-se a encontros informais, em princípio regulares, na casa de um nobre ou mecenas, onde um grupo de eruditos debatiam temas que iam da poesia à matemática, passando pela astrologia / astronomia, filosofia e medicina. Um exemplo foi a casa dos Medici, em Florença, no século XV. Estes grupos evoluíram para sociedades, mais ou menos organizadas, das quais a mais famosa foi a Accademia dei Lincei (o nome revela a pouca modéstia dos seus membros, que se julgavam possuidores de uma perspicácia de lince!), fundada por quatro jovens aristocratas em 1603, entre os quais o Príncipe Federico Cesi. Galileu foi membro desta academia e nela divulgou as suas descobertas astronómicas. O nome “telescópio” foi mesmo proposto num banquete dos “linces” em honra de Galileu. Foi através desta academia que Galileu publicou o seu opúsculo em que anunciava a descoberta das manchas solares e onde já defendia o sistema de Copérnico.

A primeira sociedade científica a receber uma autorização oficial da Igreja Católica foi, porém, a Accademia del Cimento (isto é, academia da experimentação), fundada em Florença, em 1657, por dois pupilos de Galileu. Contou com o patrocínio do Príncipe Leopoldo de Medici, irmão do Grão-Duque Fernando II, que conseguiu reunir a maior colecção de equipamento científico da época ao longo dos seus dez anos de existência. Estas sociedades satisfaziam os caprichos dos seus patronos, dos quais dependiam economicamente, sem posuírem uma estrutura coerente de pesquisa científica. Nos “Ensaios das Experiências Naturais” da Accademia del Cimento publicados em 1667 destacam-se as mais variadas experiências nas áreas da pneumática, som, magnetismo, movimento, etc. realizadas com os instrumentos da academia.

O papel da Itália como centro da “nova ciência” terminou com a extinção da Accademia del Cimento e com a assumpção, por parte da Igreja, de uma postura repressiva de novas ideias que contrariassem os escritos de Aristóteles e Ptolomeu. A Inglaterra herdou o legado italiano, ao criar a Royal Society. Desde 1645 que um grupo de cientistas, na altura designados “filósofos naturais”, se reunia em Londres, com alguma regularidade, para discutir novas ideias e comunicar resultados obtidos individualmente. Tratava-se de um conjunto de personalidades bem informadas que mantinham correspondência com os principais cientistas europeus. Em 1662, este grupo tornou-se na Royal Society, formalizada por Carta Régia de D. Carlos II (no mesmo ano em que este se casou com Catarina de Bragança, filha do rei de Portugal D. João IV). Não tinha quaisquer obrigações para com o governo e o próprio D. Carlos II nunca a levou muito a sério (chamava aos membros os "meus bobos"). Apesar de o rei ser o patrono no papel, ele nunca lhe atribuiu qualquer subsídio (concedeu apenas algumas benesses como o envio da correspondência externa pela mala diplomática). A Royal Society tinha membros estrangeiros notáveis, como o holandês Christiaan Huyghens. Apesar da dedicação de muitos dos seus associados, a Royal Society não se tornou um verdadeiro instituto de ciência nas décadas que se seguiram à sua fundação, funcionando sem programa e ao sabor do impulso das reuniões.


Com um cariz governamental surgiu em Paris, quatro anos após a Royal Society, o seu equivalente francês – a Académie des Sciences. Após a morte do Cardeal Mazarino, em 1661, e a ascensão ao trono do jovem Luís XIV, estavam criadas as condições para um reforço da importância da investigação científica francesa. Ao contrário da corte inglesa, o rei francês decidiu criar a Academia das Ciências não só como uma forma de afirmação da coroa francesa na Europa mas também para alimentar as suas pretensões ao nível de inovações aplicadas à guerra, à navegação, à arquitectura e engenharia. Desta forma, e por Carta Régia de 1666, providenciou aos cientistas fundos e instalações adequadas. Em troca, os cientistas reconheciam certas obrigações perante o estado francês. A selecção dos académicos esteve a cargo do ministro francês Jean-Baptiste Colbert, que não se esqueceu de incluir Huyghens na sua lista.

Por iniciativa do filósofo e matemático Gottfried Wilhelm Leibniz, surgiu em 1700 em Berlim a Akademie der Wissenschaften. Seguindo o exemplo francês, a academia berlinense teve como primeiro patrono o futuro rei de Brandeburgo-Prússia, Frederico I.

A divulgação das ideias era sustentada pela publicação de livros, normalmente escritos na língua franca da ciência – o latim -, e pela correspondência trocada. Era, porém, necessário compilar os novos conhecimentos de forma a extrair deles uma “verdadeira filosofia da natureza.” Uma preocupação das academias científicas foi, portanto, que os seus membros e colaboradores publicassem os seus trabalhos sob a forma de livro, o que nem sempre era possível em virtude de dificuldades financeiras (essas obras não tinham grande procura por parte do público!). Uma forma de despertar o interesse e o apoio do público ao trabalho realizado nas sociedades científicas foi então a publicação periódica dos conteúdos das reuniões. O primeiro exemplo deste tipo de publicações surgiu em França em 1665, com o nome de “Journal des Savants”. Abrangia todos os campos do conhecimento e incluía documentos entregues por membros da Academia das Ciências francesa. Mas esse jornal durou apenas três meses.

Talvez estimulado pelo exemplo francês, o secretário da Royal Society, Henry Oldenburg, põs ainda em 1665 em circulação em Londres as “Phylosophical Transactions”. Este periódico mensal fazia a divulgação da actividade científica da sociedade e incluía alguma correspondência e a lista de livros recebidos do estrangeiro. Tinha também por objectivo concitar a curiosidade do público mais informado. A selecção dos conteúdos esteve a cargo de Oldenburg, na qualidade de editor e proprietário, revertendo parte dos lucros para a Royal Society. Oldenbourg contava com adjuntos científicos e matemáticos, como Robert Boyle e John Collins, que o apoiavam na selecção e tradução dos textos. As “Actas Filosóficas” ganharam grande notoriedade, sendo muito procuradas no estrangeiro. Foram traduzidas para latim e para várias línguas europeias, multiplicando-se o número dos autores que enviavam artigos para publicação. Estava criado o periódico científico – o veículo da divulgação dos documentos científicos a toda a comunidade de investigadores e também ao público em geral. Este tipo de revista científica foi imitada noutros locais: por exemplo, o “Giornale dei Letterati”, em Roma, as “Acta Eruditorum”, em Leipzig (fundadas por Leibniz) e as “Mémoires de l’ Académie des Sciences”, em Paris. Se bem que a revista científica foi vital para o desenvolvimento da ciência, o livro científico conservou o seu alto estatuto, nomeadamente na transmissão de conteúdos mais abrangentes e com maior impacto.

Em Portugal, a primeira academia dedicada ao cultivo da ciência foi fundada pela rainha D. Maria I em 24 de Dezembro de 1779, com o nome de Academia Real das Ciências de Lisboa. Como membros fundadores destacam-se o Duque de Lafões, seu primeiro Presidente, e Domingos Vandelli, seu primeiro secretário, o Abade Correira da Serra e o Padre Teodoro de Almeida. Os seus fundadores afirmaram que a Academia “é consagrada à glória e felicidade pública, para adiantamento da Instrução Nacional, perfeição das Ciências e das Artes e aumento da Indústria Popular”. Provavelmente por influência francesa, a Academia Real das Ciências de Lisboa iniciou a publicação do seu periódico científico, as “Memórias”.

Carlos Fiolhai
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Para Denunciar uma Mentira

A obra ensaística de George Orwell é de extrema actualidade. Infelizmente, muitas pessoas parecem desconhecer o seu ensaísmo, pensando por isso que se trata apenas de um novelista relativamente menor, que escreveu duas parábolas memoráveis, Animal Farm (1945) e Mil Novecentos e Oitenta e Quatro (1949), além de Homenagem à Catalunha (1938), que narra as suas experiências na guerra civil espanhola.


O ensaísmo de George Orwell, pseudónimo literário de Eric Arthur Blair (1903-1950), é um caso raro de sofisticação intelectual, sem deixar contudo de ser firmemente popular: os seus ensaios não foram publicados em revistas académicas, mas sim na imprensa popular. E envergonham muitos artigos das revistas académicas pela precisão da linguagem, sofisticação do pensamento e originalidade de posições. Na verdade, um dos traços emblemáticos de Orwell é a recusa em deixar-se levar pelos preconceitos do seu tempo — pelo pensamento já mastigado e pronto a usar, a que tantos intelectuais, nas universidades e na imprensa popular, deitam mão. A lucidez e a sinceridade são marcas de Orwell que cativam qualquer leitor preocupado com a descoberta da verdade das coisas. Num dos últimos artigos que publicou antes de morrer, "Reflexões sobre Gandhi" (1949), Orwell começa por afirmar que "Os santos devem sempre ser considerados culpados até se provar que são inocentes". Esta surpreendente declaração é o princípio de uma análise das ideias e da actuação política de Gandhi, análise que prima pela procura da verdade. Orwell parte da ideia de que quando um político surge como um santo, sincero e absolutamente honesto, algo de profundamente errado pode estar a acontecer — porque estas são armas retóricas que funcionam demasiado bem junto do povo para podermos aceitá-las sem desconfiança. Mas no decorrer da sua análise Orwell conclui, contra a sua expectativa inicial, que Gandhi é realmente um grande estadista, que deixa atrás de si uma atmosfera política mais límpida.


Orwell expôs-se com uma sinceridade rara ao olhar público, e concentrou como ninguém a atenção no exterior — e não em si mesmo e na sua promoção. Nunca teve gestos que visassem o auto-engrandecimento, como tantos ensaístas vaidosos, talvez em parte porque sempre esteve demasiado ocupado a tentar melhorar o mundo da política com a arma da palavra escrita. A sua sinceridade é particularmente manifesta no ensaio "Por Que Escrevo", de 1946, no qual confessa a vaidade de ver as suas palavras impressas, e que todo o escritor é parcialmente vaidoso. Mas explica também a motivação descentrada que o faz escrever: a preocupação com a verdade e a justiça. "Escrevo porque há uma mentira qualquer que quero denunciar", declara Orwell numa passagem memorável.


No célebre ensaio "Política e a Língua Inglesa" (1946), Orwell desmascara com implacável lucidez a manipulação política que ocorre na escrita lamacenta, obscura, desnecessariamente complicada. Mas mostra também como o uso de uma linguagem com lugares-comuns e metáforas agonizantes denuncia a falta de pensamento do autor, que se limita a reafirmar os preconceitos do seu tempo, sem parar por instantes para se perguntar se tais preconceitos serão realmente defensáveis. O espírito de manada é um dos grandes pecadilhos da humanidade e Orwell um dos seus mais elegantes antídotos. Ao fazer uma lista de seis regras para escrever de modo lúcido, Orwell revela a sua lucidez na última das regras: "Viole qualquer destas regras de preferência a dizer algo obviamente bárbaro". O pensamento de Orwell dá uma prioridade tal à realidade que não se deixa render a regras automáticas que podem sempre falhar em casos concretos.


Numa recensão do livro O Poder: Uma Nova Análise Social, de Bertrand Russell, Orwell começa por declarar que "descemos a um ponto tal que a reafirmação do óbvio é o primeiro dever dos homens inteligentes". Efectivamente, a defesa lúcida e rigorosa da justiça e da verdade parece insípida quando se desceu a um ponto tal de confusão mental que só declarações tonitruantes, e parvas, parecem atrair as atenções. A este respeito, não estamos hoje melhor do que no tempo de Orwell, e estamos talvez pior. Alguns pensadores pretensamente libertários no nosso tempo têm um pensamento em tudo semelhante ao pensamento nazi, mas nem se apercebem disso. Ao elevar a identidade comunitária acima da racionalidade, ao desprezar a verdade e ao defender que toda a argumentação é manipulação, fazem o serviço dos que sempre defenderam os privilégios, a tradição e a autoridade, contra os valores iluministas da razão e da verdade.


Orwell foi um dos primeiros intelectuais de tendência socialista a denunciar o regime soviético. Quando alguns intelectuais defendiam ainda a gloriosa revolução do proletariado, Orwell viu com incrível lucidez o tipo de regime totalitário, inimigo da liberdade e da justiça, que as ideias de Marx inspiravam. E este é outro dos traços distintivos de Orwell: nunca trocou as voltas à realidade para tentar encaixá-la nas suas ideias políticas. Neste sentido, Orwell foi um ensaísta anti-ideológico, pois o pensamento ideológico, marxista ou mercantilista, caracteriza-se por distorcer a realidade para que possa bater certo com as ideias, e é indiferente às consequências concretas que resultam da aplicação das suas teorias preferidas. Compare-se isto com o ensaísmo contemporâneo, em que tantas vezes nem vale a pena ler os artigos dos mais conhecidos ensaístas porque já sabemos de antemão o que vão dizer, pois tudo distorcem para fazer encaixar a realidade na sua ideologia preferida. Orwell era socialista não no sentido de defender qualquer corpo de dogmas, mas no sentido de defender a dignidade das pessoas, a justiça, a verdade e a liberdade.


Mais surpreendente poderá ser para alguns leitores deste blog a lucidez da sua compreensão da ciência — e do disparatado uso retórico que se faz da palavra "ciência". No ensaio "O Que é a Ciência?" (1945), Orwell começa por distinguir lucidamente dois sentidos da palavra: o sentido experimental restrito, que aponta apenas para os resultados de ciências como a química ou a física. Neste sentido da palavra, pensamos num cientista como alguém com uma bata branca a fazer experiências num laboratório. Noutro sentido, a palavra quer dizer algo como um método de pensar criticamente sobre qualquer problema. É neste sentido que a ciência é realmente importante, e não tanto no primeiro, mas a confusão de ambos os sentidos tem um efeito perverso no ensino: Orwell defende que no segundo sentido da palavra precisamos de mais ciência no ensino, mas que geralmente os políticos entendem que mais ciência no ensino é mais ciência no primeiro sentido da palavra. E o argumento de Orwell é que uma besta ignara, sabendo todavia muitos factos científicos, continuará a ser uma besta ignara se desconhecer a filosofia, a literatura, a história ou a sociologia.


A Antígona está a proceder à edição das obras de Orwell. Publicadas estão já Recordando a Guerra de Espanha, Na Penúria em Paris e em Londres, Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, O Caminho para Wigan Pier e Homenagem à Catalunha. Anuncia ainda para breve uma recolha de alguns ensaios, assim como um importante estudo do seu pensamento político, da autoria de John Newsinger, Orwell's Politics. Para quem lê inglês, há uma edição deliciosa e barata da Everyman Library, organizada e prefaciada por John Carey, que contém todos os seus ensaios.

Posted by Desidério Murch