Aos sábados, após a ceia, os homens samarras iam ao cabeleireiro, i.é. “ao quarto das barbas” do ti Zé Dionísio, ou do Sr. Eduardo que vinha do Sorval, cortar o cabelo ou fazerem a barba semanal e enquanto aguardavam pela sua vez, mantinham dois dedos de conversa com quem estivesse, pois era aqui, que na ausência de jornais e de rádio se sabiam as novidades locais e regionais. Já quanto às mulheres, era no forno comunitário ou ao ribeiro que punham a conversa em dia e que, algumas, lavavam a roupa suja que levavam e a outra.
Numa noite invernosa, no barbeiro, numa de conversa puxa conversa um diz, em jeito de aposta, que dava 40$00 (0.20€), quando um homem a trabalhar de sol a sol ganhava cerca de 8$00 (0,04€), a quem tivesse a coragem de ir a Trancoso aquela hora. Um dos presentes aceita a aposta e põem-se a caminho, primeiro e até à ponte romana da ribeira com algumas cautelas, saindo do caminho aqui e acolá, dando tempo a que alguém que o pudesse seguir, sabe-se lá com que intenções, tivesse tempo de passar. Atentemos que aqueles caminhos de cabras eram mesmo medrosos e ainda por cima no inverno. Entretanto, a mulher samarra já consumida nas horas tardias, porque o seu homem não chegava, levanta-se da cama e vai a casa de um compadre, perguntar o que sabia do seu homem e ouve o compadre dizer para a mulher, e o “excomungado” sempre foi. Foi onde compadre?.. Este abre-lhe o “janelo” da porta e conta-lhe o sucedido. Fica mais aliviada mas, receosa de que algo lhe pudesse acontecer e com o coração apertado, volta para junto dos filhos ainda pequenitos, aguardando acordada e a rezar a chegada do seu homem. Quando de madrugada chegou ao destino, fez questão de entrar pela porta D’EL Rei das muralhas medievais, aguardou que o comércio abrisse, pediu um comprovativo da sua estada ao comerciante de roupas e tecidos, que tinha a loja junto desta porta à esquerda e qual capitão Andrew Rowan, o que entregou a Carta a Garcia, regressa a aldeia com o documento de missão cumprida e a admiração do comerciante.
Esta aldeia foi terra de moleiros e padeiras, uns moíam o centeio e o trigo nos seus moinhos instalados na ribeira e outras coziam o pão de noite no forno comunitário e de manhã cedo, com um cesto de cada lado no lombo da burra, iam pelas aldeias para fazerem a venda do pão centeio ou trigo de quartos, tal com os padeiros que hoje nos visitam mas de carro. Já a noite estava que nem breu, quando o marido de uma padeira, o ti Bernardino Ramos, resolve ir procurar a mulher, que tinha ido fazer a venda às aldeias para os lados de Vila Franca, mas tendo duas hipóteses de caminho de regresso, pede a um amigo para o ajudar. O amigo que não negava a ajuda a ninguém, logo se prontificou e foi pelo caminho dos mortórios, o mais medroso e ele pelo outro o do Sr. dos Aflitos. Quanto ao receio de que alguma coisa pudesse acontecer à sua padeira, era bem real, pois junto à Santa Bárbara um malvado samarra esperava a padeira escondido numa moita de castanheiros que, quando descoberto saltou para o caminho, não confessando no entanto o porquê de se encontrar ali àquelas horas tardias. De certo que não seria para a proteger. A padeira, com o seu instinto feminino, tinha optado pelo caminho alternativo ainda que mais longo, mas menos assombrado, vindo assim a encontrar-se com o seu homem e sentindo-se mais protegida chegou a casa sem ser molestada. Tal como as padeiras, também o sardinheiro madrugava para ir ao comboio a Vila Franca das Naves, comprar uma caixa de sardinha, que carregava no burro ou na bicicleta e que logo pela manhã procurava vender aos seus conterrâneos, fazendo-se anunciar através do som de uma corneta.
Foi este Samarra dos factos anteriores que, numa tarde de férias de verão, passando junto da esplanada de um café, vê uns garotões e seus amigos franceses a achincalharem uma conterrânea que ali tomava um café e que na altura tinha problemas do foro mental e o seu comportamento levava a que aqueles troçassem dela, sem que alguém a defendesse. Ele do alto dos seus 80 anos e do ar austero que estes lhe conferiam, dá-lhes uma roda de civismo e retirou-a dali para sua casa. Este fato foi me relatado pelo Sr. J. F. Paula em forma de admiração e elogio pela sua atitude.
Factos protagonizados por um corajoso Samarra, hoje nonagenário, mas de certo que outros samarras os poderiam ter vivido, sobretudo aqueles que desde a sua “garotice” carregam o traço genético das dificuldades porque passaram, no ardo trabalho, na fome, nos dias do ano que passaram descalços, não pelas ruas calcetadas e limpas que hoje conhecemos, mas pelos tortuosos caminhos e carreiros, pelas restolhas e pinhais, atrás do “vivo” vacas e burras e dos rebanhos de ovelhas e cabras, com estas também de noite e atrás da rabiça do arado, pois só de inverno calçavam os tamancos que os pais mais habilidosos lhes faziam, com um pedaço de pau de amieiro, por ser leve e uma sola por cima, que compravam na loja do Pardalejo em Pinhel, sendo ferrados de lado e à frente com uma ferragem que mandavam fazer aos ferreiros da terra para durarem mais, mas também e talvez por isso, carregavam o génese da coragem, da solidariedade, do respeito e honradez. Isto, na época em que um compromisso era selado com um aperto de mão e colher uns figos na figueira do vizinho, desde que fossem para comer na hora, não era desonra e ainda se sujeitava a ouvir do proprietário, se aparecesse, coma para baixo!... A propósito, as mulheres samarras também usavam tamancas a maior parte do ano.
Texto: Apaulos